Em Janeiro será feita a primeira reedição alemã desde o fim da II Guerra Mundial
O politólogo António Costa Pinto escreve a introdução à edição
portuguesa que a E-Primatur está a fazer chegar ao mercado. Defende que,
em 2015, o opus magnum de Aldof Hitler não passa de “um pedaço da
História” já “sem capacidade de mobilização extremista”.
Já se sabe: apesar do rasto que conseguiu deixar, Mein Kampf (A Minha
Luta), de Adolf Hitler, é uma obra de estatura questionável, tanto em
termos teóricos como literários. Era-o nos anos 30 e 40 do século XX,
quando se tornou num revoltante bestseller, é-o redobradamente agora, 70
anos volvidos sobre a queda do III Reich e o suicídio do seu autor.
Qual então o interesse – e, já agora, quais os perigos – de reeditar
este livro proscrito, talvez o mais odiado da História? É o que estão a fazer vários países, aproveitando o momento em que os direitos da obra entram no domínio público. Alemanha e França estão entre esses países. Portugal também. “Os perigos são escassos”, defende o politólogo António Costa Pinto na introdução à edição que a E-Primatur está a fazer chegar ao mercado. “Mein Kampf não serve já como documento de ódio”, defende também Hugo Xavier, da editora.
Com o lettering gótico e o vermelho, preto e branco directamente
importados da imagética Nazi na capa, a primeira edição integral
portuguesa do século XXI está pronta a comercializar um mês antes da
grande edição comentada que o Instituto de História Comparada de Munique
conta publicar em Janeiro, na que será a primeira reedição alemã desde o
fim da II Guerra Mundial – e no que é também o mais ambicioso dos
projectos internacionais envolvendo hoje a obra que o líder do Partido
Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães começou a estruturar em
1924.
A do IHCM é uma edição em dois volumes, como a original, mas com duas
mil páginas e cerca de cinco mil entradas de notas e comentários de nova
investigação académica. Tem um fôlego absolutamente distinto da edição
portuguesa, que surge num volume único e conta apenas com a breve
introdução de Costa Pinto – três páginas.
Mein Kampf - A Minha Luta
Adolf Hitler, António Costa Pinto (prefácio)
E-Primatur, 656 págs
Preço de capa: 22 euros
Adolf Hitler, António Costa Pinto (prefácio)
E-Primatur, 656 págs
Preço de capa: 22 euros
A do IHCM apresenta-se como uma obra monumental de desmontagem das teses
racistas e anti-semitas de Hitler, visando minorar o impacto negativo
da reedição. Até porque há a ter em conta “os sentimentos das vítimas” do Holocausto, como explicou o governo regional bávaro, que até este ano foi titular
dos direitos da obra e decidiu não endorsar o projecto. Mas este é um
ponto de vista distinto do trabalhado por Costa Pinto. Especialista em
sistemas autoritários e fascistas, o politólogo português pondera
sobretudo a capacidade de mobilização da obra. E essa é irrelevante,
defende.
Mein Kampf tornou-se “definitivamente e apenas um pedaço da História
Mundial, sem capacidade de mobilização extremista”, lê-se na edição da
E-Primatur. Já o interesse da reedição, como documento histórico “é
grande por um motivo simples e raro: o seu autor teve a oportunidade
histórica de tentar cumprir pelo menos uma parte do que escreveu”,
explica Costa Pinto.
“Se tivesse ficado apenas como um manifesto ideológico de um chefe
político extremista do início do século XX, racista e anti-semita, Mein
Kampf ter-se-ia provavelmente perdido na multidão”, escreve ainda o
politólogo. E os dados históricos de vendas parecem dar-lhe razão.
No ano do seu lançamento, em 1925, Mein Kampf vendeu 9473 exemplares,
número que foi descendo muito nos três anos seguintes. Só a partir de
1929 as vendas começaram outra vez a subir. E o grande salto – para o
milhão de exemplares – surgiu apenas em 1933, o ano em que Hitler se
tornou chanceler, etapa fundamental da sua marcha de supremacia
individual, numa escalada que fez com que em 1940 a sua autobiografia
doutrinária fosse de quase leitura obrigatória, vendendo seis milhões de
exemplares.
No total, no seu tempo, Mein Kampf terá vendido cerca de 12 milhões de
cópias. Depois, em 1945, chegou a vitória dos aliados, a queda do
fascismo alemão e o suicídio do Führer: Mein Kampf foi dado como livro
maldito e proibido em muitos países, ficando os seus direitos na posse
do governo regional da Baviera, que desmantelou a principal editora
Nazi, a Franz Eher, de onde esta obra saíra, e não permitiu a transição
da titularidade para herdeiros que pudessem continuar a comercializá-la.
Assim, ao longo da segunda metade do século XX Mein Kampf surgiu em
edições clandestinas, muitas das quais truncadas, apesar de se
apresentarem como integrais. E muitas, claro, ligadas a organizações de
extrema-direita, que por vezes editam o texto de forma a evidenciar a
sua carga de manifesto ideológico.
Em Portugal, a edição mais recente listada pela Biblioteca Nacional é de
2011 e está atribuída a uma editora identificada como Casa de Berlim.
Antes, em 1998, houve a polémica e mediática edição que a Hugin
conseguiu fazer chegar às livrarias mas acabou por retirar por pressão
da comunidade judaica e da embaixada alemã em Lisboa, que invocaram a
legislação europeia contra o apelo ao ódio, à xenofobia e ao racismo.
Antes ainda houve a edição de 1987 da Pensamento. A primeira após a
conhecida edição de 1976 que Fernando Ribeiro de Mello começou a
preparar para a Afrodite depois do 25 de Abril.
É esta última versão, da Afrodite, que a E-Primatur retoma, com uma
revisão de Marcelino Amaral que introduz cerca de 20 novas páginas em
português.
Originalmente traduzida por Jaime de Carvalho, a versão da Afrodite
tinha vários trechos deixados em alemão, explica Hugo Xavier, um dos
responsáveis da E-Primatur. Houve também todo um novo trabalho de
cotejamento, explica ainda este responsável. Por exemplo, termos que no
original alemão eram usados em diferentes declinações – sinónimos como
raça, etnia e linhagem – na versão da Afrodite tinham sido passados
uniformemente a “raça”. Foi corrigido.
A da E-Primatur será, assim, uma versão mais fiel ao original, mais
correcta. O que não muda em nada a qualidade intrínseca desta “obra
chatíssima, que podia ter sido escrita em 100 páginas”, em vez de mais
de 600, ironiza o editor.
Hugo Xavier é especialmente crítico em relação ao obsoletismo de muitos
dos conteúdos de Mein Kampf, nomeadamente em relação a considerações de
geopolítica internacional, hoje anacrónicas. É especialmente crítico,
também, em relação à fragilidade de um pensamento que começa por
desmontar a decadência do sistema parlamentar para acabar a atribuir à
comunidade judaica a responsabilidade de todos os males da sociedade
moderna. É crítico ainda em relação a questões de forma. Primeiro em
relação à lógica narrativa circular, com as ideias a repetirem-se
ciclicamente. Depois, em relação ao tom de insulto às massas populares,
tratadas como “ignorantes”, “brutas”, numa abordagem que considera
dificilmente tolerável pelos leitores de hoje.
Tal como Costa Pinto, Hugo Xavier defende que, pelo conjunto destes
motivos, Mein Kampf “não serve já como documento de ódio”, exigindo,
para isso, “muito trabalho de edição”. E este constitui novo motivo para
uma defesa da publicação integral e cuidada: o editor acredita que, na
verdade, contribuirá para a desmistificação da obra.
Não é apenas uma opinião distanciada, já muito deslocada do epicentro do
Holocausto e do contacto com as suas vítimas directas. Esta é também a
opinião, por exemplo, da jornalista e escritora Miriam Assor, que nasceu
numa família de judeus ortodoxos e que, depois de uma visita aos campos
de concentração, em 1985, decidiu fazer dois anos de vida comunitária
noskibutz de Israel. Filha de Abraham Assor, rabino histórico da
comunidade israelita de Lisboa, Miriam Assor acredita que a reedição de
Mein Kampf“pode vir a educar e fazer ver tudo o que está errado”.
“Quem milita ideias anti-semitas não precisa da bíblia Nazi para as suas
convicções”, defende a jornalista e escritora. Miriam Assor leu Mein
Kampfdurante a sua estadia em Israel. “Fundamentalmente, agride o
espírito humano. Há quem consiga isso escrevendo bem, não é este o caso.
Se calhar as pessoas vão perceber agora que ele foi ditado por um
ignorante e que a sua raiva, dirigida aos judeus, é mal estruturada.”
O “tom inflamado, incendiário” não esconde a “paranóia” do homem por
detrás, diz ainda: “É errado censurar, mostrar medo” em relação a este
livro “ridículo”.
Precisamente, é de liberdade de expressão – e, dentro desta, de
liberdade de imprensa – que primeiro fala José Carp, actual líder da
Comunidade Israelita de Lisboa. “Nós somos sempre a favor da liberdade
de expressão, e isso implica liberdade de imprensa”, começa por dizer ao
PÚBLICO. No entanto, a comunidade não reuniu ainda para debater o “tema
delicado” desta reedição. Assim, José Carp não sabe em que ponto se
encontrarão as diferentes sensibilidades internas e que posição
colectiva será tomada. Explica apenas entender que “as consequências da
leitura [de Mein Kampf] dependerão sempre de quem lê”: “O livro retrata a
base de todo o projecto Nazi, com todas as consequências, não só para
os judeus, as primeiras vítimas, como para toda a humanidade. Retrata a
base para a tentativa de extermínio de um povo no coração da Europa há
pouco mais de meio século. A crítica ao livro está fundamentada dentro
dele mesmo, no seu mal, no seu projecto de ódio. Mas é preciso que quem
lê consiga ver isso.”
José Carp não leu Mein Kampf na íntegra, apenas trechos. “Toda a minha
família materna morreu nos campos de concentração. Toda. Porque haveria
eu de ler a confirmação de algo que sei que aconteceu e porque
aconteceu? Para alguém como eu, qual a razão para o ler?”
A E-Primatur
diz não saber apontar qual o perfil de potencial comprador nem que
expectativas de vendas ter. “Não sabemos se o público está preparado
para o comprar como documento histórico”, resume Hugo Xavier, que já
publicou Os Mutilados, de Hermann Ungar, o romance no topo da lista de
livros a destruir pelo regime Nazi, e que, no princípio do ano publicará
também Bambi, de Felix Salten, um dos ódios pessoais de Hitler e
igualmente banido durante o III Reich.
Fonte: Publico
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